Foto: Ricardo Salmito |
A
mulher que lava as roupas de algum apartamento vizinho acaba de
chegar. Ela vem com um rádio ligado e se instala na pia comum do
prédio, distante de dois metros da minha janela. Estou sob leitura,
acomodado com clima ameno da manhã em rede de algodão cru. Gosto de
ler pela manhã, estudar, produzir em separado. Tarde e noite são
pra as reuniões, aulas, projetos coletivos e tantos. O céu de
nuvens me faz questionar a validade dessa trouxa de calças, panos e
afins que vai receber sabão e água. Pode chover no Crato. Tem
chovido e parte de minha tranquilidade matinal se dá por essa via,
via de águas.
A
emissora varia o repertório de estridências. Salvo o Rei, não
distingo uma canção da outra. Não me são familiares de sutileza.
Sei que já as ouvi, de lugares comuns da música. Música comum
feita para prescindir de letras ou de casamento entre letra e música.
Feitas para durarem pouco. E só tenho a manhã. Me inquieto. Penso
na diferença que faz um fone de ouvidos. Esse artefato ao mesmo
tempo com objetivos absurdamente contrastantes de convivência, de
ausência de convivência e de consulta de otorrinolaringologista.
Faz falta.
Passo
a página e tenho que voltar pois não me recordo com precisão do
que o Kracauer me dizia. Me distraio. Assim como a massa que ele
teoriza a respeito. Ganho um exemplo em mim mesmo do ‘divertimento’
da cultura... Risos. Mas quero ler apenas e gosto de ler. Gosto de
ler de manhã na rede. Funciona para mim como operação prazerosa. E
a leitura associada ao prazer (em Borges) é que é leitura
(felicidade). Atividade-atitude decadente essa. Não a da leitura.
Nunca se leu tanto como hoje! Mas o ato da leitura parece escapar da
invenção do mundo, do prazer e da continuidade. Leitura é
acessório ruidoso.
Saio
da rede para ver a lavagem da roupa sob rádio. Paro ali diante
daquela calça jeans sendo torcida. Movimento automático e preciso.
Há uma força desproporcional a ser feita pelo acréscimo de água
na peça. Há um peso sob os meus olhos. Esqueço os fones de ouvido,
esqueço o Kracauer e a música. Esqueço a manhã e as nuvens.
Esqueço minha tentativa de irritação. Penso apenas nas pessoas e
no trabalho.
Não
posso pensar em outra coisa. E o trabalho deve mesmo ter sua canção
própria. Alguma música, certa música. Qualquer música. Não para
esquecer que se trabalha, mas para suportar o trabalho e reconhece-lo
trabalho. Minha leitura é trabalho também. E silêncio, minha
música. Mas não volto para a rede. É preciso respeitar o trabalho
daquela mulher que toma agora a quarta calça jeans para torcer.
Calças de trabalho lavadas e aos poucos pesadamente estendidas no
varal abaixo das nuvens. Tantas calças jeans! São da mesma pessoa,
certamente, pelo tamanho e modelo.
Escapa
de vez minha determinação para a leitura. Organizo papéis,
mochila, arrumo algo da casa. Tenho uma sensação estranha de perder
meu lugar de trabalho. Aulas e roupas passam por mim estendidas em
quadro a quadro, cor em cor.
De
repente me dou conta, não escuto mais o rádio. Vou à janela, não
há ninguém. Há lençóis, meias, shorts, camisas, toalhas, panos
de prato. Alguns ordenados se visitam. Outros aleatórios se
destacam. Percorro pacientemente o resultado do trabalho da mulher.
Leio seu texto de cores e cheiro de pingo escorrendo água em roupa
lavada. O mundo do trabalho é o mundo das cores e da espera das
águas variadas.
Noto
que o céu abriu forte. O sol apareceu para secar roupas e ideias.