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terça-feira

O Brasil e a atualidade do Macunaíma

A atualidade de Macunaíma relembra Alfredo Bosi, crítico e professor da Universidade de São Paulo.

* * *




Primeiramente: a atual situação, a encruza sempre reencontrada, esbatida no caminho. Quase. Certa feita, em não dar certo. Golpe em curso, eterno retorno do Mesmo, a política esboroa cínica e burra. Qual futuro? Ora pro nobis, sempre às voltas com a agonia de um futuro à imagem e semelhança:

“A consciência popular brasileira se faz inviolável, insubordinável, não se deixando invadir e dominar, é graças a este escudo brincalhão do riso e da malícia. Se não fosse assim, todos seríamos eleitores guiados pela TV, resignados com a pouca vergonha que campeia por aí” (Darcy Ribeiro, p. XIX).

E não somos? Inertes e perplexos, não estamos? Qual futuro?

“No entanto, não há em Macunaíma a contemplação serena de uma síntese. Ao contrário, o autor insiste no modo de ser incoerente e desencontrado desse “caráter” que, de tão plural, resulta em ser “nenhum”. E aquele possível “otimismo”, que era amor às falas e aos feitos populares, ao seu teor livre e instintivo, esbarra na constatação melancólica de uma amorfia sem medula nem projeto. O herói de nossa gente é cúpido, lascivo, glutão, indolente, covarde, mentiroso, ainda que por seus desastres mereça a piedade do céu que o abrigará entre as constelações. É a Ursa Maior.
(…)
Coexistem ou alternam-se, na gangorra ideológica, o otimismo e o pessimismo em face dos destinos do povo brasileiro. Creio que tal irresolução é cognitiva e afetiva: Macunaíma se inscreve no quadro de perplexidades que tem por nomes Retrato do Brasil, Casa Grande & Senzala, Raízes do Brasil, todas obras pensadas em um tempo dilacerado pelo desejo de compreender o país, acusar as suas mazelas, mas remir a hipoteca das teorias colonizadoras e racistas que havia tantos anos pesava sobre a nossa vida intelectual” (p. 179*).


Qual futuro?


____________
* Macunaíma o herói sem nenhum caráter. Ed. crítica / Telê Porto Ancona Lopez, coordenadora. Paris: Association Arquives de la Littérature latino-américaine, des Caraïbes et africaine du XX siècle; Brasília, DF: CNPQ, 1988.

a atualidade do Macunaíma

A atualidade de Macunaíma relembra Alfredo Bosi, crítico e professor da Universidade de São Paulo.

* * *

Primeiramente: a atual situação, a encruza sempre reencontrada, esbatida no caminho. Quase. Certa feita, em não dar certo. Golpe em curso, eterno retorno do Mesmo, a política esboroa cínica e burra. Qual futuro? Ora pro nobis, sempre às voltas com a agonia de um futuro à imagem e semelhança:

“A consciência popular brasileira se faz inviolável, insubordinável, não se deixando invadir e dominar, é graças a este escudo brincalhão do riso e da malícia. Se não fosse assim, todos seríamos eleitores guiados pela TV, resignados com a pouca vergonha que campeia por aí” (Darcy Ribeiro, p. XIX).

E não somos? Inertes e perplexos, não estamos? Qual futuro?

“No entanto, não há em Macunaíma a contemplação serena de uma síntese. Ao contrário, o autor insiste no modo de ser incoerente e desencontrado desse “caráter” que, de tão plural, resulta em ser “nenhum”. E aquele possível “otimismo”, que era amor às falas e aos feitos populares, ao seu teor livre e instintivo, esbarra na constatação melancólica de uma amorfia sem medula nem projeto. O herói de nossa gente é cúpido, lascivo, glutão, indolente, covarde, mentiroso, ainda que por seus desastres mereça a piedade do céu que o abrigará entre as constelações. É a Ursa Maior.
(…)
Coexistem ou alternam-se, na gangorra ideológica, o otimismo e o pessimismo em face dos destinos do povo brasileiro. Creio que tal irresolução é cognitiva e afetiva: Macunaíma se inscreve no quadro de perplexidades que tem por nomes Retrato do Brasil, Casa Grande & Senzala, Raízes do Brasil, todas obras pensadas em um tempo dilacerado pelo desejo de compreender o país, acusar as suas mazelas, mas remir a hipoteca das teorias colonizadoras e racistas que havia tantos anos pesava sobre a nossa vida intelectual” (p. 179*).


Qual futuro?


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* Macunaíma o herói sem nenhum caráter. Ed. crítica / Telê Porto Ancona Lopez, coordenadora. Paris: Association Arquives de la Littérature latino-américaine, des Caraïbes et africaine du XX siècle; Brasília, DF: CNPQ, 1988.

Macunaíma - edição crítica





Sugestão de nosso amigo palhaço de classe, um achado, cadinho de sonho.

A edição crítica, coordenada por Telê Porto Ancona Lopez, de “Macunaíma – o herói sem nenhum caráter”, por Mário de Andrade.

O interesse por Macunaíma me foi renovado por uma controvérsia com um estudante, pondo-se contra à minha sugestão de utilizar “Macunaíma” para nomear uma atividade de extensão da faculdade, na qual estávamos juntos empenhados com outros professores, profissionais e estudantes. O seu argumento contra “Macunaíma” era o de que ele reforçaria o estigma de “negro preguiçoso”, e tudo enquanto fossem imagens negativas, pejorativas, contra as pessoas de cor. Mário de Andrade então teria prestado um desserviço às gentes brasileiras, ao esboçar qualidade tão vil quanto a preguiça como sendo parte (da falta de) do caráter da entidade nacional.

Foi então me socorrendo ao amigo palhaço de classe sobre o denunciado racismo na obra de nosso modernista “ingênuo”, que me apresentou a tal edição crítica em pauta.

Talvez ousasse dizer ao gentio estudante, que o trágico seja saber que renegar a preguiça seria permanecer encantado, e numa margem mais distante, pelo civilizado moderno –“macho adulto branco sempre no comando”. Ao contrário, 

"Uma brasileira preguiça, diria Antonio Cândido, como a reação do escravo predestinado pelo senhor a ser queimado no eito como carvão humano se não se poupa, negando-se à sua destinação de morrer para o patrão lucrar. Os descendentes do escravo e do senhor aí estão, até hoje, nesta contenda: os esfoladores e os esfolados, os tristes e os risonhos" (Darcy Ribeiro, p. XX).

No texto que segue a então "Liminar", de Darcy Ribeiro – entusiasta da obra -, “Situação de Macunaíma”, Alfredo Bosi escreveu:

“O brasileiro seria um homem desavindo consigo mesmo. Não encontrando lugar próprio nem na mata nem na metrópole, nem no Uraricoera nem na Paulicéia, ele padece em ambos. Não por acaso

Macunaíma desiste de viver na sua terra. Mas fugir para onde?

Para o céu, onde é possível morar como estrela e brilhar de um “brilho inútil”:

A Ursa Maior é Macunaíma. É mesmo o herói capenga que de tanto penar na terra sem saúde e com muita saúva, se aborreceu de tudo, foi-se embora e banza solitário no campo vasto do céu”.

A filosofia da preguiça tropical se espiritualiza e vira inércia sublimada” (!) (p. 180).