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sexta-feira

as cidades do Novo Mundo




[ Atualmente mantém-se uma moda, necessária sem dúvida, de tematizar as cidades. Críticas ao modo como elas se desenvolvem, crescem, amontoando as pessoas. A mobilidade humana na cidade, a especulação imobiliária avançando sobre áreas históricas, os processos de gentrificação, a falta de planejamento urbano a longo prazo, ausência de infra-estrutura em questões básicas como esgotamento sanitário, a desvalorização do patrimônio histórico salvo apenas pelo gongo do mercado turístico, os letreiros das lojas recobrindo belas e deterioradas fachadas antigas; e poder-se-ia enumerar mais um monte de mazelas.

Para retirar o peso de atualidade desses problemas, e lançarmos a vista para mais longe (seja para um passado ou para um futuro), reproduzimos um trecho do livro Tristes Trópicos do antropólogo Claude Lévi-Strauss. Membro da equipe que fundou a USP (Universidade de São Paulo), Lévi-Strauss escreveu esse livro narrativa de viagem quinze anos depois de sua expedição ao Brasil em 1935. Com ironia e algum sarcasmo escorridos do alto de sua ancestralidade milenar, vejamos o que nos diz o etnólogo sobre a cidade de São Paulo, à época; e se há, guardadas proporções, alguma similitude com o que sentimos acontecer hoje em nossas cidades. E mais, com paciência, percebamos a argúcia de seus argumentos e o volteio crítico-poético de suas considerações – o que pode aplacar a sensação de “nunca antes” quanto ao caos urbano em nossos dias. ]


   “Um espírito malicioso definiu a América como uma terra que passou da barbárie à decadência sem conhecer a civilização. Poder-se-ia, com mais acerto, aplicar a fórmula às cidades do Novo Mundo: elas vão do viço à decrepitude sem parar na idade avançada. Uma estudante brasileira voltou-me em lágrimas após sua primeira viagem à França: Paris lhe pareceu suja, com seus prédios enegrecidos. A brancura e a limpeza eram os únicos critérios à sua disposição para apreciar uma cidade. Mas essas férias fora do tempo a que convida o gênero monumental, essa vida sem idade que caracteriza as mais belas cidades, transformadas em objeto de contemplação e de reflexão, e não mais em simples instrumentos da função urbana – as cidades americanas nunca chegam a tal. Nas cidades do Novo Mundo, seja Nova York, Chicago ou São Paulo, que muitas vezes lhe foi comparada, o que me impressiona não é a falta de vestígios: essa ausência é um elemento de seu significado. Ao contrário desses turistas europeus que torcem o nariz porque não podem acrescentar a seus troféus de caça mais uma catedral do século XIII, alegro-me em me adaptar a um sistema sem dimensão temporal, para interpretar uma forma diferente de civilização. Mas é no erro contrário que caio: já que as cidades são novas e tiram dessa novidade sua essência e sua justificação, custo a perdoá-las por não continuarem a sê-lo. Para as cidades européias, a passagem dos séculos constitui uma promoção; para as americanas, a dos anos é uma decadência. Pois não são apenas construídas recentemente; são construídas para se renovarem com a mesma rapidez com que foram erguidas, quer dizer, mal. No momento em que surgem, os novos bairros nem sequer são elementos urbanos: são brilhantes demais, novos demais, alegres demais para tanto. Mais se pensaria numa feira, numa exposição internacional construída para poucos meses. Após esse prazo, a festa termina e esses grandes bibelôs fenecem: as fachadas descascam, a chuva e a fuligem traçam seus sulcos, o estilo sai de moda, o ordenamento primitivo desaparece sob as demolições exigidas, ao lado, por outra impaciência. Não são cidades novas contrastando com cidades velhas; mas cidades com ciclo de evolução curtíssimo, comparadas com cidades de ciclo lento. Certas cidades da Europa adormecem suavemente na morte; as do Novo Mundo vivem febrilmente uma doença crônica; eternamente jovens, jamais são saudáveis, porém.

   Ao visitar Nova York ou Chicago em 1941, ao chegar a São Paulo em 1935, não foi, portanto, o aspecto novo que de início me espantou, mas a precocidade dos estragos do tempo. Não me surpreendeu que a essas cidades faltassem dez séculos, impressionou-me verificar que tantos bairros já tivessem cinquenta anos; que, sem pejo, alardeassem tais estigmas, visto que o único encanto a que poderiam aspirar seria o de uma juventude fugaz tanto para eles como para os vivos. Ferros-velhos, bondes vermelhos como carros de bombeiros, bares de mogno com balcão de latão polido, depósitos de tijolos em ruelas solitárias onde só o vento varre o lixo, paróquias rústicas ao pé de escritórios e de Bolsas de valores em estilo de catedral, labirintos de prédios esverdeados encimando abismos entrecortados por trincheiras, viadutos sinuosos e passarelas, cidade que cresce permanentemente em altura pela acumulação de seus próprios escombros que sustentam as construções novas: Chicago, imagem das Américas, não surpreende que em ti o Novo Mundo preze a memória dos anos 1880! Pois a única antiguidade a que ele pode aspirar em sua sede de renovação é essa modesta distância de meio século, curta demais para servir à apreciação de nossas sociedades milenares mas que lhe dá, a ele que não pensa no tempo, uma ínfima oportunidade de se enternecer com sua juventude transitória”. 

(Companhia das Letras, 1996, pp. 91, 92)