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quarta-feira

arte, loucura


Mas há outro aspecto ainda mais importante para compreender a relação entre arte e loucura.  É a questão do sentido da arte. Em geral não há consenso em relação ao que podemos chamar “o sentido da arte”. Assim, podemos partir da ideia de que a arte partilha também com a loucura o problema do sentido. Mas se a arte ainda pode ter um sentido, a loucura é o que não terá sentido jamais. Ela representa uma ruptura justamente com o sentido que a arte pode, de algum modo, vir a constituir. Neste sentido, a arte surge em contraposição à loucura. Ao mesmo tempo, a semelhança entre elas pesa mais do que a diferença.
(...)
A arte escapa, assim como a loucura, dos discursos científicos que tentam amarrá-la. Neste sentido, ela tem mais poder que a loucura. E este poder vem do fato de que a arte é a linguagem universal. Somente ela une os reinos tão ideologicamente separados quanto o dos que são designados como sãos e o dos que manifestam-se no lugar do que os ditos sãos entendem como doentes”.
Obra: Arthur Bispo do Rosário

Música de Trabalho


Foto: Ricardo Salmito
A mulher que lava as roupas de algum apartamento vizinho acaba de chegar. Ela vem com um rádio ligado e se instala na pia comum do prédio, distante de dois metros da minha janela. Estou sob leitura, acomodado com clima ameno da manhã em rede de algodão cru. Gosto de ler pela manhã, estudar, produzir em separado. Tarde e noite são pra as reuniões, aulas, projetos coletivos e tantos. O céu de nuvens me faz questionar a validade dessa trouxa de calças, panos e afins que vai receber sabão e água. Pode chover no Crato. Tem chovido e parte de minha tranquilidade matinal se dá por essa via, via de águas.

A emissora varia o repertório de estridências. Salvo o Rei, não distingo uma canção da outra. Não me são familiares de sutileza. Sei que já as ouvi, de lugares comuns da música. Música comum feita para prescindir de letras ou de casamento entre letra e música. Feitas para durarem pouco. E só tenho a manhã. Me inquieto. Penso na diferença que faz um fone de ouvidos. Esse artefato ao mesmo tempo com objetivos absurdamente contrastantes de convivência, de ausência de convivência e de consulta de otorrinolaringologista. Faz falta.

terça-feira

muita FÉ no homem



“...a cultura ocidental moderna destruiu definitivamente os conceitos clássicos de continuidade, de lei universal, de relação causal, de previsibilidade dos fenômenos: em suma, renunciou à elaboração de fórmulas gerais que pretendem definir o conjunto do mundo em termos simples e definitivos. Novas categorias ingressaram na linguagem contemporânea: ambigüidade, insegurança, possibilidade, probabilidade (...) todos esses elementos da cultura contemporânea estão unificados por um estado de espírito fundamental: a consciência de que o universo ordenado e imutável de outrora, no mundo contemporâneo, representa, quando muito, uma nostalgia: mas já não é nosso. Daqui – e será preciso dizê-lo? – nasce a problemática da crise, pois é preciso uma firme estrutura moral e muita fé nas possibilidades do homem para aceitar despreocupadamente um mundo no qual parece impossível introduzir módulos de ordem definitivos”. 

[Umberto Eco, “O Zen e o ocidente” em Obra Aberta, p. 205, 206].



Fonte: Militância Erótica

sexta-feira

as cidades do Novo Mundo




[ Atualmente mantém-se uma moda, necessária sem dúvida, de tematizar as cidades. Críticas ao modo como elas se desenvolvem, crescem, amontoando as pessoas. A mobilidade humana na cidade, a especulação imobiliária avançando sobre áreas históricas, os processos de gentrificação, a falta de planejamento urbano a longo prazo, ausência de infra-estrutura em questões básicas como esgotamento sanitário, a desvalorização do patrimônio histórico salvo apenas pelo gongo do mercado turístico, os letreiros das lojas recobrindo belas e deterioradas fachadas antigas; e poder-se-ia enumerar mais um monte de mazelas.

Para retirar o peso de atualidade desses problemas, e lançarmos a vista para mais longe (seja para um passado ou para um futuro), reproduzimos um trecho do livro Tristes Trópicos do antropólogo Claude Lévi-Strauss. Membro da equipe que fundou a USP (Universidade de São Paulo), Lévi-Strauss escreveu esse livro narrativa de viagem quinze anos depois de sua expedição ao Brasil em 1935. Com ironia e algum sarcasmo escorridos do alto de sua ancestralidade milenar, vejamos o que nos diz o etnólogo sobre a cidade de São Paulo, à época; e se há, guardadas proporções, alguma similitude com o que sentimos acontecer hoje em nossas cidades. E mais, com paciência, percebamos a argúcia de seus argumentos e o volteio crítico-poético de suas considerações – o que pode aplacar a sensação de “nunca antes” quanto ao caos urbano em nossos dias. ]

sábado

a formação das cidades no Brasil

[ Trecho de uma entrevista realizada nos idos de 1995, com o antropólogo Claude Lévi-Strauss [1908-2009], quando ele fala de sua estada em São Paulo: ]


"... Mas há também uma dimensão à qual nem sempre se presta atenção e que foi capital para mim: a do fenômeno urbano.

    Quando cheguei a São Paulo [1935], dizia-se que se construía uma casa por hora. E, nessa época, havia uma companhia britânica que, há quatro ou cinco anos apenas, abria territórios a oeste do estado. Ela construía uma linha de estrada de ferro e organizava uma cidade a cada 15 quilômetros. Na primeira, a mais antiga, havia 3 mil habitantes; na segunda, noventa; na terceira, sessenta; e, na mais recente, um único - um francês

    Nessa época, um dos grandes privilégios no Brasil era poder assistir, de maneira quase experimental, à formação desse fantástico fenômeno humano que é uma cidade. Entre nós, às vezes, a cidade resulta, é claro, de uma decisão de Estado, mas sobretudo de milhões de pequenas iniciativas individuais tomadas ao longo de séculos. No Brasil dos anos 1930, podia-se observar esse processo, abreviado, produzir-se em alguns anos". 

[Editora Unesp, 2011, "Longe do Brasil"]